O Transcendente como metaproblemático
The Transcendent as a Metaproblematic

Rev. abordagem gestál. (Impr.); 22 (1), 2016
Publication year: 2016

É possível, em cada momento, separar-me o suficiente de minha vida para observá-la como uma sucessão de sorteios. Alguns deles já se realizaram. Constato que vários números já foram sorteados, o que me permite dizer que tenho boa ou má sorte. Devem sair, ainda, outros números; porém ignoro absolutamente por quanto tempo se prolongará essa loteria. Poderei concluir a obra na qual agora trabalho? Viajar à Grécia no próximo ano? Assistir as bodas de meu filho? Tudo isso é problemático: desde o instante em que admiti participar desta loteria - e esta participação começou no dia de minha concepção -, foi-me entregue um bilhete, no qual figura uma sentença de morte; o lugar, a data e a forma de execução permanecem em branco. Rompendo um pouco com minha atitude inicial de distanciamento e considerando mais de perto os destinos que sucessivamente me tocam, está claro que não posso tratá-los como simples elementos que se podem justapor, formando uma coleção. Estes êxitos ou fracassos atuam uns sobre os outros, se matizam, se penetram entre si. Não posso atribuir valores fixos aos sorteios já realizados; esses valores variam em função dos sorteios que me restam receber. Observo, entretanto, que a forma em que me foi dado acolher estas impressões pode tomar-se, também, como outro sorteio: uma propensão à revolta ou uma atitude de resignação. Porém, ao mesmo tempo noto que, se isso que sou forma parte já do despojado, do recebido, a representação que fazia de minha vida como uma loteria carece de todo sentido. Sem dúvida, talvez seja legítimo afirmar que somente recebo a condição de enunciar o que sou antes de receber; porém, posso ser sem ser algo ou alguém? Resulta evidente que me é impossível tentar traçar uma linha divisória objetivamente precisa entre minha natureza e os dons ou privações que me foram dados sem saber por quê ou por quem. Em meio a todas estas nuvens que se acumulam e, de certa forma, descendem de um desconhecido futuro até as profundezas de um passado que cada vez se deixa reconhecer menos como dado, uma segurança permanece invariável: eu morrerei. Minha morte, a qual me aguarda, é não-problemática. É suficiente que se imponha a mim como um astro fixo no universal cintilar dos possíveis.

Minha morte:

ela ainda não é um fato; seria uma ideia? Se fosse uma ideia, poderia delimitá-la, tomá-la como objeto; ora, isso me resulta impossível. Somente posso imaginá-la e ultrapassá-la no pensamento como resultado da condição de situar-me no lugar deum outro que sobrevive e o que eu chamo, então, minha morte será sua morte. Se eu assumo como um fato qualquer que eu me represente, é a favor desta coincidência realizada no pensamento; mas imediatamente quando tomo consciência desta substituição ideal, ela cessa; e, como consequência, minha morte, essa morte à qual não posso dar uma forma, me domina, me esmaga. Pelo simples fato de que é certa, ela está sobre mim; minha situação não difere em nada da de um condenado, encerrado em um espaço cujas paredes, minuto a minuto, se aproximam. Não há nada em minha existência atual e mesmo passada que não possa ser dissecado, pulverizado pela presença de minha morte em mim mesmo, ou melhor, sobre mim mesmo.

E mais:

como não ceder, atordoado, à tentação de pôr um fim a esta espera, a esta pausa miserável e indeterminada, livrando-me assim do suplício de sua iminência?

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