Um olhar sociológico sobre o privilégio epistémico da biomedicina: desconstruindo a metanarrativa
A sociological view on the epistemic privilege of biomedicine: deconstructing the metanarrative
Saúde Soc; 27 (4), 2018
Publication year: 2018
Resumo Apesar do crescente reconhecimento público da sua incompletude e da necessidade de a fazer dialogar com outros saberes, a biomedicina continua a figurar como metanarrativa, como modelo médico epistemologicamente superior, definidor e regulador do que se entende por "saber médico". É na persistência dessa representação de superioridade que reside um dos grandes obstáculos - senão mesmo o maior - à criação de uma efetiva ecologia de saberes no campo dos cuidados de saúde. Com base numa revisão da literatura sobre o tema, este artigo toma justamente por objetivo a desconstrução da versão essencialista da superioridade biomédica, evidenciando o modo como essa suposta superioridade é, na verdade, decorrente de um complexo quadro sociocultural de produção histórica. Assim, revisitando a literatura existente, o artigo desenvolve perspectiva condensada em torno dos principais pilares da construção do poder hegemónico da biomedicina no contexto da modernidade ocidental, a saber: (1) a ligação umbilical da biomedicina à ciência moderna e à sua trajetória de colonização; (2) o processo de anatomoclínica e o modo como, por esse processo, a biomedicina se estabeleceu como poder normativo/regulador, passando a auferir legitimidade e proteção por parte dos Estados; (3) a suposta maior eficácia da biomedicina no quadro de sua maior compatibilidade com os novos imperativos capitalistas; e (4) a constituição de forte movimento profissional biomédico e suas estratégias de fechamento na construção de sua hegemonia.
Abstract Despite the growing public recognition of its incompleteness and its need to make it dialog with other knowledges, biomedicine continues to figure as a metanarrative, as an epistemologically superior medical model, defining and regulating what is meant by "medical knowledge". One of the great obstacles - if not the greatest - to the creation of an effective ecology of knowledges in the field of health care lies in the persistence of this representation of superiority. Based on a review of the literature about the subject, this article aims precisely at deconstructing the essentialist version of biomedicine's superiority, showing how this supposed superiority results, in fact, from a complex sociocultural framework of historical production. In this sense, revisiting the existing literature, the article develops a condensed perspective around the main pillars of the construction of the hegemonic power of biomedicine in the context of Western modernity: (1) the umbilical connection of biomedicine to modern science and its colonization trajectory; (2) the anatomical-clinical process and how biomedicine established itself, through this process, as a normative/regulatory power, gaining legitimacy and protection by the States; (3) the alleged greater effectiveness of biomedicine in the context of its greater compatibility with the new capitalist imperatives; and (4) the constitution of a strong biomedical professional movement and its closing strategies in the construction of its hegemony.