A relação de causalidade entre Zika vírus e síndrome congênita: análise de uma controvérsia em meio a uma crise de saúde pública
The causal link between Zika virus and congenital syndrome: controversy analysis in the midst of a public health crisis
Publication year: 2021
Theses and dissertations in Portugués presented to the Universidade de São Paulo. Faculdade de Saúde Pública to obtain the academic title of Doutor. Leader: Akerman, Marco
Introdução — Um vírus recém-chegado ao Brasil, o Zika, é tido como causa do aumento de más-formações congênitas em 2016 com evidências consideradas frágeis (correlação temporal, análises laboratoriais e estudos de caso). Objetivo — Analisa-se dissensos e consensos em torno da causalidade Zika-microcefalia entre 2015 e 2017 no Brasil, com o intuito de entender o porquê das disputas, reconstruir a narrativa a partir de atores diversos e investigar seu impacto. Métodos — Com metodologia inspirada na Teoria Ator-Rede e no mapeamento de controvérsias — em que se seguem conexões diversas a partir do entendimento de que evidências científicas são coproduzidas por ciência e sociedade, humanos e não humanos — foram feitas 50 entrevistas e uma roda de conversa com 13 mães em 8 estados brasileiros: Bahia (Salvador), Brasília (Distrito Federal), Pará (Ananindeua e Belém), Paraíba (Campina Grande), Pernambuco (Recife), Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande do Norte (Natal) e São Paulo (Jundiaí, São Paulo e Campinas), além de visitas a instituições como a Fiocruz e universidades. Resultados — Como contribuição principal, a análise propõe que a explicação para as más-formações foi apresentada à narrativa pública com uma perspectiva unicausal atrelada ao Zika vírus — como uma hipótese-fato e não uma hipótese-pergunta — apesar de evidências multicausais e de cofatores associados ao desfecho. O trabalho denomina a narrativa da causalidade das anomalias observadas entre 2015 e 2017 como uma causa constrita de efeito cosmológico, em que a relação "A (Zika), logo B (Microcefalia)" é transladada como um problema central no fenômeno, sobrepondo-se a outras hipóteses multicausais e necessidades de estudos científicos para outros objetos — como intervenções em crianças e determinantes sociais. A análise destaca que, embora evidências epidemiológicas apontem para diferenças de risco no território brasileiro, a pergunta sobre a possibilidade de cofatores não deflagrou a mesma mobilização que a procura do agente etiológico. Atravessada por discussões globais e um modelo padrão de governança de risco, a controvérsia foi estabilizada por uma aliança cientistasimprensa- gestores, com a mobilização de uma ontologia única e purificada de não humanos — e não porque acabaram-se as perguntas —, o que invisibilizou dinâmicas locais. Nota-se que a opção pela simplicidade do discurso teve por base um modelo deficitário e pouco participativo de divulgação pública, que reforça a unicausalidade e atrela o Zika à ontologia da dengue, com consequências para a prevenção e para a própria ciência, que experimenta os efeitos recursivos da narrativa proposta. Apontase que cientistas têm preocupações sociais, mas pouca reflexividade sobre sua agência para além da produção de evidências. Conclusões — Considera-se a necessidade de discursos multicausais de epidemias na narrativa pública brasileira, vindos de cientistas e de instituições de pesquisa centrais, de modo a conferir variadas vias de ação de enfrentamento, bem como a formulação de perguntas científicas reflexivas e dinâmicas com capacidade de refazer hipóteses a partir da produção de novas evidências ao longo do tempo.
Introduction — A virus then newly arrived in Brazil, Zika, is believed to be the cause of an increase in congenital malformations in 2016 with evidence considered fragile for a causal relationship (temporal correlation, laboratory analyses and case studies). Purpose — This work analyzes dissents and consensuses around the causality link between Zika and microcephaly from 2015 to 2017 in Brazil, with the aim of understanding the reasons for the disputes, reconstructing the narrative through different actors and investigating its impact. Methods — With a methodology inspired by Actor-Network Theory and controversy mapping — in which the researcher follows connections based on the comprehension that scientific evidence is co-produced by science and society, human and non-human — data was collected through 50 interviews and a conversation circle (13 mothers), in 8 Brazilian states: Bahia (Salvador), Brasília (Distrito Federal), Pará (Ananindeua e Belém), Paraíba (Campina Grande), Pernambuco (Recife), Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande do Norte (Natal) and São Paulo (Jundiaí, São Paulo and Campinas), in addition to visits to institutions such as Fiocruz and universities. Results — As a main contribution, the analysis proposes the explanation for malformations was presented to the public narrative as an unicausal perspective linked to Zika virus — as a hypothesis-fact and not a hypothesis-question — despite multi-causal evidence and cofactors associated with the outcome. The work describes the causality narrative of anomalies observed between 2015 and 2017 as a constricted cause of cosmological effect, in which the relationship "A (Zika), then B (Microcephaly)" is translated as a central problem, surpassing other multicausal hypotheses and the needs for scientific studies for other objects, such as interventions in children and social determinants. The analysis highlights that although epidemiological evidence points to differences in risk across the Brazilian territory, the question about the possibility of cofactors did not trigger the same mobilization as the search for the etiological agent. Traversed by global discussions and a standard risk governance model, the controversy was stabilized by a scientists-press-managers alliance, with the mobilization of a single, purified ontology of non-humans — and not because the questions were over —, which made local dynamics invisible. It is noted that the option for discourse simplicity was based on a deficient participatory model of public disclosure, which reinforces the unicausality and links Zika to the dengue ontology, with consequences for prevention and for science itself, which experiences the recursive effects of the proposed narrative. It is pointed out that scientists have social concerns, but little reflexivity concerning their agency beyond evidence production. Conclusions — The need for multi-causal epidemic discourses in the Brazilian public narrative is considered, coming from scientists and central research institutions, in order to allow for diverse coping strategies, as well as the formulation of reflexive and dynamic scientific questions with the capacity to remodel their hypotheses based on new evidence over time.