Figurações do Traumático: reflexões sobre o trauma e a traumatização psicológica
Traumatic figurations: on trauma and psychological traumatization
Publication year: 2021
Theses and dissertations in Portugués presented to the Universidade do Estado do Rio de Janeiro to obtain the academic title of Mestre. Leader: Guerrero, Francisco Javier Ortega
Desde a sua origem na medicina cirúrgica do século XVII, o termo “trauma” já recebeu usos tão distintos quanto foram as suas linhas de investigação. Teve seu emprego relacionado à lesão tissular subjacente ao impacto físico capaz de fraturar ossos e romper órgãos; teve sua existência atribuída ao terror da iminência da morte por descarrilhamento ou pela colisão de trens, que tanto atormentavam o imaginário das sociedades urbanas industriais; foi, por fim, relacionado aos procedimentos aterradores da campanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial. Seja enquanto fratura, seja enquanto efração psicológica, seja enquanto memória coletiva, o conceito de trauma reflete as transformações na interpretação ocidental do sofrimento e do infortúnio, e indica a emergência de uma sensibilidade social contemporânea politicamente orientada para a reparação e para o testemunho. Hoje em sua florescência apoteótica, a pesquisa do trauma reveste seu objeto com a densa tecnologia neurobiológica, prescrevendo, para ele, sistemas fisiológicos, marcadores metabólicos e uma causalidade fisicalista que secundarizou as antigas referências psicodinâmicas pelas quais outrora se revelavam seus mecanismos de instalação.
Assim o trauma se tornou um elemento manifesto:
foi extraído do território virtualizado da memória – e da representação que a sugeriria – para se tornar visível na objetividade das dobras, dos giros e das seções do aparato cerebral. Esta pesquisa objetivou demonstrar como algumas das acepções presentes na origem da conceitualização do fenômeno traumático, tanto na nomenclatura médica quanto em sua apropriação como conceito operativo nas disciplinas do campo psicodinâmico, são capazes de elucidar a transformação epistemológica que culminou na profunda reconfiguração de suas matrizes explicativas. Em outras palavras, ela procura acompanhar como o trauma psicológico ganhou autonomia sobre as descrições anatômicas para ser, cerca de um século depois, por ela reanexada enquanto fenômeno essencialmente corporal e incorporado à gramática neurocientífica.
Since its origins in surgical medicine in the 17th century, the term “trauma” has already received uses as different as its lines of investigation. Its use was related to tissue damage underlying the physical impact capable of fracturing bones and breaking organs; its existence was attributed to the terror of imminent death by derailment or by train collisions, which so tormented the imagination of industrial urban societies; it was finally related to the appalling procedures of the Nazi campaign during World War II. Whether as a fracture, whether as a psychological effraction, or as a collective memory, the concept of trauma reflects the transformations in the Western interpretation of suffering and misfortune and indicates the emergence of a contemporary social sensitivity that is politically oriented towards reparation and witness. Today, in its apotheotic flowering, trauma research coats its object with dense neurobiological technology, prescribing for it physiological systems, metabolic markers and a physicalist causality that gave second place to the old psychodynamic references by which its installation mechanisms were once revealed. Thus, trauma became a manifest element: it was extracted from the virtualized territory of memory – and the representation that would suggest it – to become visible in the objectivity of the folds, turns and sections of the cerebral apparatus. This research aimed to demonstrate how some of the meanings present at the origin of the conceptualization of the traumatic phenomenon, both in medical nomenclature and in its appropriation as an operative concept in the disciplines of the psychodynamic field, are able to elucidate the epistemological transformation that culminated in the profound reconfiguration of its explanatory matrice. In other words, it seeks to follow how psychological trauma gained autonomy over anatomical descriptions to be, around a century later, re-attached by it as an essentially bodily phenomenon and incorporated into neuroscientific grammar.