Palavras e olhares de uma pandemia
Words and looks of a pandemic
Publication year: 2023
Em primeiro lugar registramos nosso agradecimento aos organizadores e às editoras que se associaram para produzir a coletânea “Palavras e
olhares de uma pandemia”, com uma diversidade de manuscritos que experimentam formatos e estéticas para um conhecimento que não pretende substituir a disseminação científica, mas que adentra na seara de uma comunicação
científica mais horizontal, capaz de mobilizar imaginários e afecções de quem
está no cotidiano e pretende modificá-lo. A pandemia nos ensinou que aprender significa aumentar a potência de transformar a si e ao mundo, para configurações mais solidárias, justas e inclusivas, assim como nos ensinamentos do
educador brasileiro Paulo Freire reconhecido internacionalmente. Ou se faz
isso, ou se assume uma identidade observadora que coloca em risco a si e ao
território que nos constitui. A coleção de textos cuidadosamente selecionados
e organizados no livro demonstra que há um grande coletivo que não pretende
observar o mundo, mas tomar o presente e o futuro em suas mãos.
No momento da escrita, estávamos aqui em Bolonha, na Itália, num
processo de trabalho colaborativo entre a Rede Unida e os sistemas socio sanitários da Região da Emília Romagna, e ouvíamos juntos a manifestação de
Cíntia Guajajara, indígena da etnia Tenethara-Guajajara, que mora na terra
indígena Arariboia, na aldeia Água Quieta, no Maranhão, falando aos colegas
italianos sobre a produção do bem viver nos territórios tradicionais. Com alguma frequência, ela precisava alternar a língua para falar sobre essa temática,
usando expressões em português e na sua língua, que é do tronco linguístico
tupi-guarani. Na alternância das línguas, frequentemente utilizava o canto e a
música para estabelecer as complexas conexões com o território (na cultura
indígena, a separação homem e natureza não faz sentido e a proteção da vida
é exatamente sincrônica com a proteção do ambiente onde vivem), que uma
parte do que pretendia dizer não era dizível apenas com as palavras, requerendo a vibração do corpo (tampouco as separações entre razão e emoção e
entre ambiente e cultura fazem sentido para nossas culturas tradicionais). Nos
relatos, Cintia com frequência sentia necessidade de reverenciar a ancestralidade, que a quebra com o pensamento do seu povo e com a história do seu
povo tornaria a informação falsa. Pelo que deduzimos da cuidadosa precisão
com que utilizava as palavras, não pretendia correr o risco de fazer circular
informações falsas, seja por negação do que é verdadeiro (e o que é verdadeiro
inclui sempre o que vem sendo transmitido ao longo do tempo pelos seus ancestrais, que teve uma validação ao longo dos séculos), seja por informações
não sustentadas em histórias que fizessem sentido no universo simbólico da
sua vivência e seus conhecimentos. A sua fala era precisa, complexa e densa.
Difícil de traduzir, por vezes, que a gramática italiana, sustentada
como o português na língua latina, não percorreu iguais processos de desenvolvimento do que o português amazônico. Difícil de ouvir, com uma recente
história de uso abusivo de medicamentos ineficazes, de circulação de notícias
falsas com finalidade política de vulnerabilizar vidas e valorizar medicamentos, de governantes exercendo visíveis ações necropolíticas ... mas também de
trabalhadores da saúde e da educação esquivando-se de combater enunciados
que fragilizam as vidas.
Bem, algumas expressões que Cíntia utilizou representam expressamente a densidade dessas conexões, quando afirmava que ela e as populações
indígenas defendem que as árvores amazônicas “permaneçam em pé”, como
as gentes, que os vivos de sua gente que foram abatidos nos combates com os
grileiros e colonizadores “encantaram-se” e permanecem na floresta (diferentemente de “ascenderem ao mundo dos mortos”). As bandeiras de quem as-
sumiu outra forma de vida e permanece encantado no território não mobiliza
apenas a memória, mas todas as formas de existência.
Enquanto ouvíamos atônitos cada palavra, cada frase, cada gesto,
nos perguntávamos sobre como atualiza tantas pontes de pensamento em curto espaço de tempo e, muitas vezes, em resposta a perguntas que visivelmente
ocupam outros lugares de fala, frequentemente de uma obviedade branca e
eurocêntrica de ruborescer nossas faces. Como é falsa a construção epistêmica
que associa natureza e condição “selvagem” e cultura com civilidade! Mas também como é limitado nosso vocabulário “ilustrado” para falar do complexo, do
que precisa perceber o múltiplo e o diverso e dialogar com eles. O diálogo com
o qual Cíntia entabula sua fala inclui construções de pensamento, produzem
imagens ao pensamento. E o pensamento não é abstração em estado puro, é
história em processo dialógico.
Falar sobre a pandemia, nesse período que nos afasta do início ou
do estágio agudo desse evento mundial recente, nos provoca a um repertório
linguístico e simbólico que não se esgota no conhecimento disciplinar que nos
tornou profissionais de saúde. Tampouco o repertório da saúde pública, que
nos fez prescrever “isolamento social” a todas as pessoas, sem refletir sobre os
efeitos em quem, por exemplo, não pode dispensar deslocamentos para viabilizar o alimento cotidiano para si ou para seus familiares, ou sobre os profissionais de saúde e das áreas essenciais, que, para circular com mais segurança
para seus afazeres de relevância à vida dos coletivos, precisavam da redução da
circulação de pessoas em geral. Afora o fato de que, para o cuidado em saúde, o distanciamento geográfico não pode ser sinônimo de isolamento. Aliás,
quebrar o isolamento físico e social é uma necessidade premente do cuidado.
Vejam a tensão que as palavras jogadas precipitadamente produzem
no cotidiano quando a condição de complexidade pede passagem. Algumas
vezes reificam o cotidiano, como bloco sólido e monolítico, intransponível.
Alguém, por acaso, esqueceu que operamos comum conceito de saúde que
afirmava tratar-se de um “estado de completo bem-estar físico, mental e
social”? Ora, no nosso cotidiano, qualquer pessoa que afirmar estar em tal
condição merece cuidados de saúde mental com urgência! Há uma evidente
desconexão com as tensões, dores e delícias do cotidiano da vida. Mas também
há uma construção que idealiza a saúde como uma condição que não cabe
no bem viver cotidiano, quiçá reivindicando apoio do complexo industrial da
saúde. A saúde para avançar na direção da integralidade precisa de uma virada epistêmica. Precisamos novas ideias, novos olhares, novos pensamentos e
novas palavras!
Assim, chegamos na chamada pública de manuscritos sobre “Palavras
e olhares de uma pandemia”. Palavras e olhares que se originam nos territórios,
com a intensidade dos fazeres e das relações que se realizaram na pandemia,
no cuidado e na formação. Há um flerte entre a ciência e a literatura nas produções que a chamada fez produzir, que é para fecundar o pensamento que
se chamou novas palavras e olhares. Há uma aposta em produções criativas
e inventivas, que é para aproximar o pensamento da saúde do bem viver. Se
permite brincar com as palavras, que é para colocar em cada uma a tensão
sobre a precisão necessária para comunicar o que se quer.
As palavras sempre requerem precisão e aqui nos lembramos de Ítalo
Calvino, que define o desafio do escritor no justo emprego da linguagem no
texto como “aquele que permite o aproximar-se das coisas (presentes ou ausentes) com discrição, atenção e cautela, respeitando o que as coisas (presentes
ou ausentes) comunicam sem o recurso das palavras” (CALVINO, 1990, p.
90-91). Precisão não é estado, é processo e contexto!
Em tempos de pandemia (o pós-pandemia é impreciso, dado que
precisamos adjetivar os efeitos tardios, atualizar a memória e os afetos, falsear
as notícias falsas, relembrar os crimes éticos e políticos do que deveria ter sido
um enfrentamento, mas que se apresentou, muitas vezes, como fomento ... e
que ainda atuam em nosso meio), buscar a justa medida das palavras requer,
muitas vezes, a coragem de reinventá-las. Essa é uma tarefa estética impostergável. Assim, cumprimentamos também os organizadores e pesquisadores de
duas importantes universidades (Universidade do Extremo Sul Catarinense
– UNESC, e Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS) e as duas
relevantes editoras (Editora da UNESC - EDIUNESC e a Editora Rede Unida),
que tiveram a ousadia de abrir a caixa de pandora das palavras e olhares da
pandemia, para que se tornassem visíveis as desgraças, mas também a esperança. Cumprimentamos também às pessoas que assumiram a ousadia de
produzir textos autorais com base na experiência ou na sensibilidade que a
pandemia despertou, para falar de aspectos que não frequentam regularmente
a literatura científica, mas que povoam e produzem encontros e cuidado. De
produzir textos com imagens, que são as linguagens das coisas como elas são.
O efeito da leitura dos textos foi de esperançamento, como sonho e
motivação para fazer o que nos pede cuidado e aprendizagem desde a pandemia. Desde antes da pandemia, que colocar alma no cuidado e na formação
das profissões da saúde é desafio antigo e impostergável.
Boa leitura, e que os textos aqui reunidos atualizem a capacidade de
produzir palavras, compor textos, viver as intensidades da vida e os encontros
que fazem sempre novas palavras necessárias para descrever a produção da
saúde como bem viver!