Publication year: 2018
INTRODUÇÃO:
A mucopolissacaridose tipo II (MPS II), ou síndrome de Hunter, é uma doença multissistêmica, cujas manifestações clínicas são heterogêneas e progressivas. Além disso, os pacientes podem apresentar regressão neurológica, sendo então classificados em indivíduos com doença grave ou atenuada, com amplo espectro fenotípico entre esses extremos. Não existe tratamento curativo para a MPS II. O cuidado dos pacientes envolve equipe multidisciplinar e inclui intervenções realizadas para amenizar o fenótipo ou específicas como o transplante de células-tronco hematopoiéticas (TCTH) alogênico mieloablativo aparentado e não aparentado ou a terapia de reposição enzimática (TRE) intravenosa semanalmente. O TCTH alogênico mieloablativo aparentado e não aparentado utilizando sangue do cordão umbilical ou medula óssea pode ser uma alternativa terapêutica com potencial de fornecer a atividade enzimática necessária para reduzir ou parar a progressão da doença, entretanto o uso do TCTH ainda é controverso, tanto pelos altos riscos de morbi-mortalidade - como a imunossupressão antes e depois do procedimento, quanto pela escassez de evidência na literatura. Alguns autores inclusive sugerem que poderia existir um viés de publicação, com relatos apenas dos casos com desfechos negativos e com poucos relatos de indivíduos que foram submetidos ao procedimento nas primeiras semanas/meses de vida. Em relação ao TCHT aparentado, o doador não deve ser portador de mutações patogênicas no gene IDS. METODOLOGIA E ESTUDOS SELECIONADOS A busca de evidências foi realizada no Pubmed utilizando a seguinte estratégia:
"Bone Marrow Transplantation"[Mesh] AND "Mucopolysaccharidosis II"[Mesh] OR ("Stem Cell Transplantation"[Mesh]) AND "Mucopolysaccharidosis II"[Mesh], limitado para estudos em humanos. O resultado foram 36 artigos, dos quais nenhum ensaio clínico ou estudo controlado. Foram identificados apenas três estudos prospectivos, dentre os quais apenas um com desfechos relevantes. Deste modo, avaliamos todos os estudos retrospectivos com n>5 pacientes, o único relato de caso brasileiro encontrado, um estudo recente avaliando a implementação de um protocolo internacional para TCTH em pacientes com mucopolissacaridose e a única revisão sistemática encontrada que inclui resultados sobre TCTH. RESULTADOS:
Pacientes: Os pacientes avaliados receberam transplante com idades variando entre 70 dias de vida [14] e 16 anos de idade [5] e foram seguidos por períodos igualmente variáveis, mas em geral superior a 5 anos [5,7–12,14], com exceção de um estudo, cuja mediana foi de 14 meses [13]. Além disso o comprometimento neurológico foi heterogêneo antes do TCTH, variando de pacientes assintomáticos a outros apresentando regressão neurológica. Mortalidade e doença do enxerto versus hospedeiro:
Um estudo prospectivo acompanhou n=8 pacientes por 7 a 17 anos, apenas um paciente faleceu nesse período, por causas não relacionadas ao transplante e apenas um paciente apresentou reação crônica pulmonar do enxerto versus hospedeiro [5]. Entre os estudos retrospectivos, um estudo publicado em 1999 relatou que, sete anos após transplante de medula óssea, apenas n=3/10 pacientes estavam vivos, fato ocasionado provavelmente pela seleção inadequada de doadores [10]. Estudos mais recentes apresentam resultados encorajadores, com taxa de sobrevida global em 3 anos de 100% (n=12) [13], 88,5% em 5 anos(n=21) [9], ou relatos de que 18% dos pacientes faleceram por causas relacionadas ao transplante (n=9/51) e doença do enxerto versus hospedeiros em 16% de todos pacientes avaliados (n=8/51) [12]. O caso brasileiro é de um menino transplantado aos 70 dias de vida, vivo 7 anos após o transplante [14]. Vale relatar outro estudo que avaliou o TCTH em casos de MPS (n=62 pacientes, MPS II n=2), cuja sobrevida global foi excelente (95,2%) e a vida livre de eventos (90,3%) com baixa toxicidade: 13,3% e 14,8% de doença do enxerto versus hospedeiro aguda e crônica, respectivamente [15]. Neurológico:
o desfecho neuropsicológico foi heterogêneo no único estudo prospectivo avaliando tal desfecho, provavelmente devido à heterogeneidade clínica dos pacientes [5]. Em estudos retrospectivos, houve estabilização da atrofia cerebral [9,10,12] e alguma melhora das habilidades motoras e da fala [13]. O paciente brasileiro demonstrou melhora motora, cognitiva e na linguagem, apesar do QI baixo (47, teste WISC-IV), desenvolvimento superior e positivo se comparado ao tio e irmão mais velhos [14]. Cardiovascular:
As anormalidades cardiovasculares se estabilizaram em todos os pacientes num estudo prospectivo (n=8) [5] e a regurgitação valvular diminuiu em n=20/63 valvas de 10 pacientes, num estudo retrospectivo [9], mas foi inconclusiva em outro (n=12) [13]. Funcionalidade:
houve melhora das contraturas articulares nos pacientes submetidos ao TCTH [5,12,13], As atividades de vida diária não se modificaram significantemente em um estudo retrospectivo [9], enquanto outro relatou melhora na doença somática e movimento quando comparados os pacientes em TRE com aqueles submetidos ao TCTH [12]. Bioquímica:
Houve normalização da atividade da enzima idursulfase e redução de GAG urinários nos estudos que avaliaram esses desfechos [5,9,10,12,13]. Outros desfechos:
houve resolução da hepatoesplenomegalia em todos os pacientes avaliados, melhora da obstrução de vias aéreas superiores, resolução progressiva da face infiltrada, na deficiência auditiva sensório-neural e estabilidade na deficiência auditiva condutiva, nos indivíduos avaliados por uma coorte prospectiva [5]. TRE versus TCTH:
Não há estudos controlados comparando diretamente ambas intervenções. Os efeitos do TCTH são comparáveis aos da TRE quanto à eficácia na doença visceral e parecem ser superiores para desfechos neurológicos, do desenvolvimento [9,10,13] e em atividades da vida diária [12]. DISCUSSÃO E CONCLUSÃO:
Os estudos publicados sobre TCTH na MPS II podem estar ultrapassados, já que muitos protocolos para transplante se modificaram positiva e significativamente ao longo dos últimos anos. Além disso, referem-se a coortes heterogêneas, de pacientes com diferentes doenças metabólicas ou relatos de casos isolados e também revelam a falta de critérios de seleção dos pacientes, uma vez que muitos já apresentavam idade avançada no momento do transplante, ou apresentavam fenótipos variáveis quanto ao comprometimento neurológico. Do mesmo modo, os parâmetros de acompanhamento e os desfechos de interesse pós-TCTH igualmente heterogêneos, dificultando comparações entre os diferentes estudos e conclusões mais sólidas, ou ainda por outros vieses menos claros, tal como a possibilidade de existência de vieses de publicação [6]. Apesar de todas as limitações supracitadas, os resultados parecem muito promissores. A morbi-mortalidade relacionada ao TCTH vem reduzindo-se progressivamente com o advento de novos protocolos, imunossupressores, melhor seleção dos pacientes candidatos e doadores [15], inclusive com relato de sucesso em paciente brasileiro [14]. Como se deve trabalhar sempre com a melhor evidência disponível, incluem-se nesta Nota Técnica todos os estudos relevantes na literatura e estes demonstraram que pode haver benefício em desfechos somáticos e neurológicos. Além disso é válido salientar que a TRE intravenosa não atravessa a barreira hematoencefálica, deve ser realizada semanalmente, durante 3 a 4 horas por infusão e continuar por toda a vida, fato que pode contribuir para considerar a TCTH como alternativa terapêutica. Deste modo, o TCTH alogênico mieloablativo aparentado e não aparentado parece ter um risco de morbi-mortalidade progressivamente menor ao passar dos anos e alguns efeitos positivos na MPSII, especialmente nos pacientes jovens. Com isso, parece ser apropriado que se reconsidere o TCTH como tratamento para a forma neuronopática da MPS II, uma vez que ele é o único tratamento atualmente disponível potencialmente capaz de proporcionar benefícios em termos neurológicos quando critérios rígidos de seleção são respeitados. Assim, o TCTH alogênico pode ser indicado em idade precoce, preferencialmente até 3 anos de idade.